É absolutamente estarrecedor. Inaceitável. Revoltante. O que aconteceu na noite de terça-feira, no Morumbis, não pode ser tratado como um incidente menor, um mal-entendido ou mais uma “confusão de jogo”. É crime. É xenofobia. E, pior ainda, é o retrato escancarado de uma hipocrisia institucional que domina nosso futebol. Tão vil quanto inadmissível.

Durante o jogo entre São Paulo e Talleres, pela Libertadores, o lateral venezuelano Miguel Navarro, do time argentino, foi alvo de uma ofensa xenofóbica proferida pelo volante paraguaio Bobadilla, do São Paulo. Segundo relato do próprio Navarro, registrado em boletim de ocorrência na polícia, a frase foi clara, direta e nojenta: “Venezuelano morto de fome.”

Seja um parceiro do The Football

Que tipo de sociedade é essa em que um atleta profissional, que deveria ser exemplo, se sente confortável, no auge de sua arrogância e ignorância, para vomitar esse tipo de agressão no meio de um jogo de futebol contra um igual? Que tipo de ambiente é esse em que isso acontece à vista de milhares de pessoas no estádio e milhões na televisão, e tudo segue… como se nada tivesse acontecido? The Football é contra todo tipo de preconceito. É uma posição inegociável.

Silêncio podre

Mas tão grave quanto o ato em si — e que talvez revele algo ainda mais podre — é o silêncio sepulcral dos dirigentes, dos clubes, dos atletas, das federações e de praticamente todo o ecossistema do futebol brasileiro. Ninguém dá ao fato a dimensão que ele merece. Nenhuma nota oficial. Palavra de repúdio. Campanha. Nenhuma faixa no gramado ou postagem nas redes sociais. Nenhuma declaração indignada na coletiva. Nada.

Bobadilla: zagueiro paraguaio do São Paulo vai responder inquérito por xenofobia contra rival venezuelano / SPFC

Por quê? Porque, desta vez, a vítima estava do outro lado. Era do time adversário. Era venezuelano. E o agressor vestia a camisa de um clube brasileiro. Quando o racismo ou a xenofobia partem de estrangeiros contra brasileiros, há mobilização, há indignação, há gritaria — correta, justa e necessária, por óbvio. Mas quando o agressor é daqui, ou quando veste nossas cores, reina o constrangimento, o silêncio cúmplice e a omissão vergonhosa.

Bobadilla foi protegido pelo São Paulo

E como se não bastasse o ato abjeto, veio a cereja podre desse bolo de hipocrisia: Bobadilla, em vez de assumir o erro, de pedir desculpas, de se responsabilizar pelo que fez, foi imediatamente protegido pelo São Paulo. Escondido. Blindado. Acobertado. Ao final do jogo, em vez de dar explicações, refugiou-se no vestiário, amparado por colegas e dirigentes, que, ao invés de oferecerem um gesto mínimo de reparação, optaram por proteger o agressor e fingir que nada havia acontecido.

Essa postura não diminui o problema. Pelo contrário: só o agrava. Porque a mensagem que se passa é clara, cristalina e devastadora: aqui, protegemos os nossos, mesmo quando eles erram de forma grave, mesmo quando cometem crimes, mesmo quando envergonham o esporte e a instituição que representam.

Bobadilla era um dos “nossos”

O que isso diz sobre nós? Sobre nosso caráter? Sobre a real convicção dos que juram defender causas contra o preconceito e a discriminação, mas que só se mobilizam quando convém, quando dói na própria pele, quando afeta “os nossos”?

Bobadilla, camisa 21, cometeu crime de xenofobia contra Navarro, do Talleres, em jogo pela Libertadores / SPFC

Se um argentino, um chileno ou um espanhol se dirigisse a um jogador brasileiro com um “macaco”, “favelado” ou qualquer outra ofensa xenofóbica, teríamos capas de jornais, editoriais indignados, exigências de punição exemplar, hashtags bombando, pronunciamentos inflamados de presidentes de clubes e até de políticos. Mas, quando é daqui pra lá, quando somos os algozes, o que se ouve? O som ensurdecedor do silêncio.

Xenofobia é crime. Sempre. Contra quem for. Onde for. De quem for. O que Bobadilla fez não é menos grave por não ter sido contra um cidadão brasileiro. Não é menos abominável porque foi dito dentro das quatro linhas. E não se torna aceitável pelo simples fato de o agressor vestir uma camisa brasileira. Pelo contrário. Isso só agrava o cenário, porque revela que há quem se ache no direito de praticar aquilo que tanto condena quando sofre na pele.

Foi um jogo muito quente, um clima tenso durante todo o jogo. Depois do nosso segundo gol, tive uma troca de palavras com o jogador do Talleres, onde fui ofendido primeiro, ele também me tratou com desprezo. Nunca tive a intenção de discriminar ninguém, mas durante aquele momento quente, acabei reagindo mal. Queria me desculpar publicamente e pedirei desculpas ao encontrá-lo pessoalmente. Desculpa e abraços a todos.
Bobadilla

Todos perdem

O futebol brasileiro perde. Perde sua dignidade. Perde sua autoridade moral para cobrar respeito lá fora. E perde, sobretudo, uma chance de mostrar que não compactua com aquilo que há de mais baixo, vil e nojento na convivência humana: o preconceito. A omissão dos clubes, das federações, dos dirigentes e até de outros jogadores — que deveriam ser os primeiros a se erguer contra isso — é cúmplice, criminosa e repugnante.

Nota do São Paulo

O São Paulo Futebol Clube, por meio desta nota oficial, reafirma seu compromisso com os princípios de respeito, igualdade e inclusão, pilares fundamentais que norteiam suas atividades esportivas e institucionais.

Em face dos acontecimentos ocorridos durante a partida contra o Club Atlético Talleres, válida pela CONMEBOL Libertadores, o Clube informa que está acompanhando atentamente a apuração dos fatos pelas autoridades competentes, colaborando integralmente com as investigações em curso.

O São Paulo FC reitera que repudia veementemente qualquer manifestação de discriminação, preconceito ou intolerância, seja ela de natureza racial, étnica, nacional ou de qualquer outra forma. O Clube permanece à disposição das autoridades e das entidades esportivas para quaisquer esclarecimentos adicionais e reforça seu compromisso contínuo com a promoção de um ambiente esportivo pautado pelo respeito mútuo e pela dignidade humana.

Em relação ao nosso atleta Bobadilla, que, ao longo de sua carreira, não apresentou histórico de conduta disciplinar negativa – ao contrário, sempre pautou sua trajetória pelo profissionalismo – entendemos ser fundamental que o Clube ofereça suporte institucional. O Clube providenciará que ele seja devidamente orientado por meio de medidas educativas que serão conduzidas pela área de compliance.

Publicidade

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui